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O movimento Fora Collor que resultou na deposição do presidente Collor de Mello em 1992 foi um marco na História do Brasil. Converteu-se no primeiro movimento majoritariamente juvenil e de massa no momento pós-redemocratização no Brasil, depôs o primeiro presidente eleito após o regime militar, em grande parte pela perda de base parlamentar do então mandatário, pela crise econômica aguda com uma recessão prolongada e pela ação dos movimentos sociais que foram também fundamentais para vocalizar a insatisfação com a política econômica, o desemprego e a miséria.

Deve-se salientar que à época havia crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente Collor amplamente documentados, com provas, diferentemente do que ocorreu em 2016, quando houve um golpe de Estado mal travestido de impeachment pelas “pedaladas fiscais”, que nunca foram motivo de questionamento em todos os governos anteriores, desde a ditadura, e que continuaram a ocorrer no governo do golpista Michel Temer em 2016 e 2017 sem qualquer questionamento pelos mesmos órgãos que tanto denunciaram o suposto ilícito das pedaladas da presidente Dilma.

O Fora Collor em 1992 teve repercussões no momento histórico posterior. No Brasil não tivemos o processo de privatizações, estrangeirização da economia e dolarização que ocorreu radicalmente por exemplo na Argentina de Carlos Menem, e isso se deu pela resistência social popular contra o modelo implantado tanto por Collor quanto por Menem e por uma série de
governantes latino americanos que abraçaram o discurso do Neoliberalismo, da abertura de mercado, da destruição dos direitos sociais e das privatizações. O Fora Collor foi um ponto alto dessa resistência, criou espaço para o crescimento do movimento social, consolidou a liderança de Lula que havia disputado e perdido a eleição de 1989 contra Collor e obrigou a Direita no Brasil a abandonar o projeto de ter uma candidatura a presidente oriunda de seus quadros, muito identificados com a ditadura militar e o governo Collor. Essa mesma Direita resolveu apoiar uma candidatura de um partido de centro à época, o PSDB, o que impediu o avanço da Esquerda, inaugurando uma aliança política do centro com a Direita no país, como consequência da repercussão do que foi o fracasso do projeto neoliberal explícito de Collor de Mello.

Esse site tem o objetivo de reunir documentos, reportagens, fotos, vídeos, depoimentos e artigos científicos para disponibilizar para o público em geral e assim contribuir para a preservação da Memória e da História recente do Brasil. Também será um canal para receber informações, documentos e registros desse momento do Fora Collor de qualquer pessoa ou instituição que tenham interesse em compartilhá-las.

Fernando Collor de Mello

O breve século XX e a longa década de 1980
 
O livro Era dos Extremos: o breve século XX, 1914–1991 é um livro de História escrito por Eric Hobsbawm em 1994 que discorre sobre o século XX, mais precisamente do início da Primeira Guerra Mundial em 1914 até a queda da União Soviética, no ano de 1991.
 
Vejamos o que diz um texto encontrado na capa desse livro de Hobsbawn, da Companhia das Letras:
 
O século XX foi um período de grandes mudanças. Para Eric Hobsbawm, o século foi breve e extremado: sua história e suas possibilidades edificaram-se sobre catástrofes, incertezas e crises, decompondo o construído no longo século XIX. Aqui, porém, o desafio não é tanto falar das perplexidades de hoje, mas mergulhar nos acontecimentos, ações e decisões que desde 1914, constituíram o mundo dos anos 90, um mundo onde passado e futuro parecem estar seccionados do presente.
 
Somente Hobsbawm, com a concisão do historiador e a fina ironia de julgamento de quem viveu e pensou em compromisso com o período sobre o qual escreve, poderia enfrentar o desafio de compreender e explicar a articulação entre a primeira Sarajevo e os quarenta anos de guerra mundial, crises econômicas e revoluções da primeira metade do século, e a última Sarajevo, das guerras étnicas e separatistas, da precariedade dos sistemas políticos transnacionais e da reposição selvagem da desigualdade contemporânea.
 
Hobsbawm divide a história do século em três “eras”. A primeira, “da catástrofe”, é marcada pelas duas grandes guerras, pelas ondas de revolução global em que o sistema político econômico da URSS surgia como alternativa histórica para o capitalismo e pela virulência da crise econômica de 1929. Também nesse período os fascismos e o descrédito das democracias liberais surgem como proposta mundial. A segunda são os anos dourados das décadas de 1950 e 1960 que, em sua paz congelada, viram a viabilização e a estabilização do capitalismo, responsável pela promoção de uma extraordinária expansão econômica e de profundas transformações sociais. Entre 1970 e 1991 dá-se o “desmoronamento” final, em que caem por terra os sistemas institucionais que previnem e limitam o barbarismo contemporâneo, dando lugar a brutalização e dolares da política e à irresponsabilidade teórica da ortodoxia econômica e abrindo as portas para um futuro incerto.
 
É interessante observar que o Breve Século XX não coincide com o cronológico século XX, os acontecimentos e forças sociais, econômicas, políticas e militares delimitaram um momento mais curto que um século e lhe conferia unidade, muito a partir da Primeira Guerra Mundial que assinalava a disputa armada das potências imperialistas sobre áreas de influência no Globo, que se estenderia permanentemente, e da Revolução Russa, que apresentou um modelo alternativo ao Capitalismo global e que se constituiu em seu antagonista durante todo o real século XX, até a queda do Muro de Berlin em 1989 e a dissolução da URSS em 1991. Essa fase histórica acelerada de ascensão e derrota dos fascismos, de crises econômicas, Guerra Fria, que envolvia a Corrida Armamentista e a Corrida Espacial, e a posterior derrota do bloco soviético, muito devido ao esgotamento provocado por essas duas “corridas”, tiveram como corolário a ascensão de um “neoliberalismo”. Esse neoliberalismo aprofundou as desigualdades e exclusões do mundo.
 
O Breve Século XX foi também intensamente vivido pelo Brasil. Vivemos os efeitos da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, tivemos aqui o surgimento do fascismo, que deixou marcas no país, tivemos uma fase desenvolvimentista e depois a ditadura civil-militar de 1964 a 1985, com seu “milagre econômico” e posterior desmoronamento. Esse último período significou um alinhamento mais profundo do Brasil aos interesses de um dos pólos da Guerra Fria, os Estados Unidos e seus aliados.
 
A própria justificativa política para o golpe de 1964 foi o “perigo comunista” que o Brasil corria, argumento típico da Guerra Fria, hoje sabido como inexistente. O que tínhamos com João Goulart era um governo e uma frente política nacionalista que propunha reformas dentro do próprio Capitalismo, que apenas aumentariam os direitos sociais e diminuiriam as desigualdades. Mas essa “modernização social” dentro do próprio Capitalismo era impensável para as elites no Brasil daquela época, assim como a inclusão social entre os anos 2003 e 2015 sofreu uma resistência e contra-ataque hoje dessas mesmas elites que são contra qualquer divisão do poder e ascensão social dos de baixo. Com certeza os quase 400 anos de escravidão indígena e negra, o extermínio dos povos indígenas, a monarquia e a falta de liberdades e práticas democráticas após a República, tudo isso deixou marcas muito fortes e presentes ainda hoje em nosso cotidiano e cultura. Temos no Brasil uma elite antinacional, entreguista e de mentalidade escravocrata que resiste a qualquer traço democratizador do poder e da riqueza. É importante registrar que após a “proclamação da República” a Democracia foi uma pequena exceção dentro de uma regra ditatorial ao longo da História.
 
A decomposição do período ditatorial no Brasil foi acompanhada pela ascensão do liberalismo selvagem a partir da década de 1980, que previa apenas a predação do patrimônio público, a desregulamentação dos direitos sociais e uma subalternização aos interesses estrangeiros estadunidenses, como no resto do mundo capitalista.
 
Mas no Brasil, assim como em outros países, assistimos ao surgimento de atores sociais novos, movimentos sociais diferentes que não foram previstos pelo estabilishment da Ditadura, pois se colocaram na contramão do neoliberalismo e do autoritarismo, na luta pela Democracia e pelos Direitos Sociais e contra uma “transição conversadora” da Ditadura Civil-Militar para a Democracia.
 
E esse período caracterizou uma “longa décadas de 1980”, que era expressão desse curto século XX e dialogava com ele, mas era um momento de rebeldia e resistência contra as forças do atraso que teimavam e queriam fazer uma transição conservadora de uma ditadura civil-militar para um neoliberalismo exacerbado. Contamos, numa definição livre, o início desse período com as greves do ABCD contra o arrocho, a carestia e a ditadura em 1978 e o fim da década com o movimento Fora Collor em 1992.
 
A partir de 1978 começa uma trajetória de greves no ABCD paulista que foram dirigidas por uma nova classe operária, muito diferente daquela organizada nos partidos comunistas. Essas greves de 1978 desafiaram a política econômica que arrochava salários e jogava nas costas dos trabalhadores o custo da crise econômico-social da Ditadura. Essas greves desafiaram a ditadura como regime político também, ou seja, era uma crítica não somente econômica ou economiscista, mas uma crítica política. Essas greves tornaram-se movimentos contra a repressão que se abatia sobre os movimentos sociais, a Constituição da ditadura então vigente, dando um caráter político claro e contribuindo para o sepultamento do regime civil-militar ditatorial.
 
O movimento sindical em São Paulo projetou, em 1978, uma liderança política de alcance nacional: o metalúrgico Luiz Inácio da Silva, que mais tarde incorporaria ao nome o apelido pelo qual era conhecido, Lula. O presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema liderou a primeira greve operária do ABC Paulista na ditadura militar, desde 1964. Em 1968, metalúrgicos do município de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, já haviam desafiado o regime militar e entrado em greve, que tinha entre os seus líderes José Ibrahim, mas no ABC após 1964, os movimentos grevistas se tornaram realidade apenas a partir de 1978.( Leia mais: http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/as-greves-dos-metalurgicos-no-abc-paulista-criacao-do-pt-a-prisao-de-lula-10141275#ixzz4qxRCDkwf)
 
Acompanhando esse movimento dos trabalhadores organizados em sindicatos, as comunidades eclesiais de base (CEBs) da Igreja Católica Progressista rompiam com um passado da Igreja, de apoio à Ditadura Civil-Militar. No golpe de 1964 o apoio da Igreja nas missas e organizando o Marcha da Família com Deus pela Liberdade ajudaram a criar uma base de sustentação do golpe. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 no Brasil em resposta a uma suposta e fantasiosa ameaça comunista que estaria encarnada no discurso em comício realizado pelo então presidente João Goulart em 13 de março de 1964 que defendeu as “Reformas de Base”.
 
Essa nova igreja militante foi forjada durante a década de 1970, trabalhava em comunidades pobres e pregava a justiça social e o Reino de Deus aqui na Terra, lutava pelos direitos sociais e teve a inspiração na Teologia da Libertação, que se espalhou pela América Latina e influenciou uma corrente similar dentro do protestantismo. Os militantes ligados às CEBs e pastorais foram responsáveis por muito das organizações por local de trabalho operário e nos bairros; na área agrária tiveram papel fundamental na luta pela Reforma Agrária. Não foi sem razão que o Vaticano, inserido na lógica Capitalista e de combate ao comunismo, baniu essa Teologia da Libertação. Leonardo Boff, principal teólogo e propagador dessa corrente, foi levado ao Vaticano e interrogado nas antigas estruturas da Inquisição Romana pelo conservador cardeal alemão Joseph Ratzinger, que deu continuidade aos trabalhos de internacionalização da rigidez moral e de combate à esquerda e ao comunismo do pontificado de João Paulo II. Antes de ser papa, Ratzinger foi o guardião da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano durante 23 anos, órgão que ficou no lugar do antigo tribunal da Inquisição, e onde Leonardo Boff foi pressionado a abjurar sua crença.
 
O Movimento Estudantil(ME), que foi a grande linha de frente de resistência à Ditadura até 1968, quando foi desmantelado pelas forças de segurança e seus líderes foram presos, torturados, mortos ou exilados, consegue se reorganizar a partir de 1975, culminando com o Congresso de Reconstrução da UNE em 1979 em Salvador, e a partir daí se integra às manifestações contra a Ditadura, pelas Diretas para presidente e pela defesa da Universidade Pública.
 
Agora o ME não era mais o único ou preponderante ator político, o movimento estudantil através da UNE dividia o palco das esquerdas e da frente de luta contra a ditadura com o novo movimento sindical, com os trabalhadores sem terra no campo, com os movimentos de bairro pela moradia e contra a carestia e com as correntes políticas que se fortaleciam na resistência à ditadura, dentro e fora do MDB. A Anistia em 1979 deu impulso a todos esses movimentos com a volta de muitos militantes exilados pela ditadura brasileira.
 
A Anistia permitiu a volta de diversas lideranças do exterior.  Havia, na época, cerca de 25 mil exilados, espalhados pelo mundo, segundo cálculos do Comitê Brasileiro pela Anistia. Muitos foram os exilados, como o presidente deposto João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Herbert de Souza, o jornalista Flávio Tavares, o político José Dirceu, o escritor e político Fernando Gabeira, Bona Garcia, Paulo Roberto Telles Franck, Gustavo Buarque Schiller, Roberto de Fortini, João Batista Rita, Edmur Péricles de Camargo, Bruno Piola, sua esposa e três filhas e muitos outros.
 
Caroline diz que um dos brasileiros mais visados no exílio foi João Goulart: no aniversário de Jango, em 1975, no dia 1º de março, foi oferecida em sua estância, em Maldonado, no Uruguai, uma festa onde um dos convidados era um agente infiltrado do SNI, o qual remeteu para a Agência Central 11 fotos do evento, além de informes sobre as pessoas presentes e conversas registradas. Outro informe, de 1976, relatava que “o ex-presidente está convicto de que poderá voltar ao Brasil neste fim de ano, ou início de 1977”.
 
Festa de aniversário de Jango, em 1975, foi fotografada por um agente infiltrado do SNI | Foto: EBC | 1- Consul geral da Argentina no Uruguai | 2- Romeu José Fiori | 3-Jango | 4- Uruguaio
Leonel Brizola, que voltou, fundou o PDT e foi governador do Rio, teve tempo de refletir e expressar seu sentimento: “O exílio é um sofrimento que, em princípio, pode conter algo de romântico, idealista, mas que depois vai se tornando de uma amargura tão grande, tão dolorosa. Você não é turista, não é estudante, é um apátrida.” (Fonte: https://www.sul21.com.br/jornal/anistia-traz-de-volta-os-exilados-e-torna-real-o-sonho-da-redemocratizacao/)
 
Podemos assim dizer que a década de 1980 real, com aspectos políticos e sociais comuns foi iniciada em 1978. Foi a década de resistência à ditadura, da luta pela Anistia e da volta dos exilados e liberdade de vários presos políticos, da retomada do Movimento Estudantil, foi a década da emergência de atores políticos novos e de organização e ação de movimentos sociais inéditos. Foi também a década da campanha das Direitas Já, da luta pela Constituinte e da Constituição Cidadã, que foi a mais avançada e democrática de nossa História, e que ainda precisamos defender contra os interesses antissociais e antidemocráticos.
 
Essa longa década foi a década da primeira eleição presidencial após o Golpe de 1964, em 1989. Consideramos que a “década” foi estendida pelo menos até 1992, com o Fora Collor, pois esse movimento eclodiu como resistência a um presidente (Fernando Collor de Melo) oriundo do grupo político da Ditadura e apoiado pelos mesmos grupos políticos daquele momento histórico sombrio. O Fora Collor foi também um movimento contra a profunda recessão econômica e a tentativa de retirada de Direitos com uma “revisão constitucional” que atentava contra a Constituição Cidadã. O Fora Collor deve ser colocado ao lado dos movimentos que ajudaram a construir as Diretas Já, a Constituição Cidadã, a participação cidadã e a organização popular. E foi um movimento de juventude principalmente, mas não só de jovens, pois envolvia sindicatos e comunidades organizadas em diversos lugares, esses novos movimentos e atores sociais construídos nessa “Longa Década de 1980”.
 
Após 1992, as forças políticas que saíram derrotadas da ditadura militar, que conseguiram emplacar o primeiro presidente eleito após o golpe e depois sofreram um revés com o movimento de massa do Fora Collor, fizeram uma inflexão política, eleitoral e estratégica. As forças de Direita mais articuladas haviam percebido que elas não tinham um nome de suas próprias hostes com condições de vencer as eleições presidenciais de 1994, e decidiram investir numa aliança com o “centro político”, tensionando-o para a Direita. Foi assim que a Direita mais orgânica no país desistiu de ter um nome mais identificado com ela mesma, como Paulo Maluf, ACM, Ronaldo Caiado, e em vez disso construiu uma aliança com grupos e forças que haviam estado na campanha das Direitas Já, na Constituinte e no Fora Collor com posições mais progressistas. Alguns nomes foram sondados para assumir essa síntese da centro-direita, como Dante de Oliveira, Rafael Greca, Antônio Brito e FHC, e esse último concordou em construir uma aliança de caráter conservador.
 
Por isso podemos dizer que 1992 pode ter encerrado um ciclo político, uma vez que após esse ano se iniciou outro ciclo, de uma hegemonia conservadora que agregou segmentos que lutaram contra a Ditadura e tiveram um papel de destaque na construção da Democracia e dos Direitos Sociais ao lado dos quadros históricos que se construíram politicamente e economicamente durante os “anos de chumbo”. Trata-se da aliança PSDB-DEM e agregados, que depois envolveu o PMDB.
 
Consideramos que entre 1978 e 1992 os segmentos sociais e políticos que lutaram contra a Ditadura, pelas eleições diretas e pela Constituição Cidadã, o novo sindicalismo, as comunidades de base, os movimentos sociais de bairro e do campo e os novos movimentos sociais ecológico, negro, de mulheres e Gay/LBGT, todos eles se afirmaram na cena polícia como atores novos, que não foram previstos pelos arquitetos da transição conservadora. Esses movimentos e forças acabaram por ter um papel mais forte do que o esperado pelos antigos “Donos do Poder”, conseguiram vitórias inesperadas na Constituição e disputaram fortemente as eleições presidenciais de 1989, chegando ao segundo turno e alcançado um resultado com Lula que mudou o quadro político brasileiro. Entretanto, esse campo nunca conseguiu ser plenamente hegemônico entre 1978 e 1992, podemos dizer que se trata de um período de transição, quando a Ditadura se decompõe e não se formou um bloco histórico conservador hegemônico no Estado, nem um bloco progressista.
 
Apesar do Fora Collor em 1992 ter sido um ponto alto na luta pelos direitos sociais, contra a recessão, o desemprego e o aumento das desigualdades, após esse ponto, conforma-se uma hegemonia política conservadora de centro-direita que manteve a presidência entre 1995 e 2002, e mesmo depois disso se manteve como pólo articulador da oposição de Direita (PSDB/DEM) aos governos do PT de 2003 até os dias de hoje.
 
Cultura na Década de 1980
O Brasil que surge ao final da Ditadura era bem diferente do Brasil de 1964 antes do Golpe. O país passou de rural para urbano, intensificou sua industrialização, sedimentou uma Indústria Cultural, montou suas redes de comunicação eletrônica. Ao mesmo tempo passou pela Revolução Sexual, pela Liberação da Mulher, pela mudança e contestação de costumes das décadas de 1960 e 1970 e pelo anseio e luta pela liberdade em todas as áreas.
 
Também na década de 1970, a atriz Leila Diniz foi a primeira mulher a exibir a barriga de grávida num biquíni, se tornando símbolo da transgressão e da liberação.
Nessas décadas a Cultura vivia sob a repressão, a perseguição e a censura, quando não sob a própria tortura e assassinatos, quando artistas tinham que rebuscar suas obras para burlar a censura e comunicar os sentimentos da Nação, que era agora urbana, industrial, contestadora em alguns momentos e contraditória em outros. Artistas dessa fase se tornaram intérpretes de nossa cultura e política, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Elis Regina, Milton Nascimento e muitos outros.
 
Esse país em transformação permitiu o surgimento de outros artistas e linguagens, que não se colocavam em lado oposto politicamente a esses primeiros, mas sedimentaram um novo movimento cultural.
 
Fazendo apenas um recorte em uma larga e diversificada cena cultural,  o Rock Nacional junto com outros movimentos culturais inovavam na década. Legião Urbana, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Titãs, Barão Vermelho e Cazuza além de vários outros traduziram muito do sentimento da busca pela liberdade, da crítica à Sociedade Brasileira, da rebeldia e da contestação.
 
Uma música da Plebe Rude na época foi “Até quando esperar?”. Essa e outras músicas combinam contestação, denúncia, inconformismo e um repúdio a tudo que é injustiça social ou opressão. Veja em Fábrica(Legião), onde ouvimos:
 
“Nosso dia vai chegar
Teremos nossa vez
Não é pedir demais:
Quero justiça
Quero trabalhar em paz
Não é muito o que lhe peço
Eu quero um trabalho honesto
Em vez de escravidão
Deve haver algum lugar
Onde o mais forte não
Consegue escravizar
Quem não tem chance

De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica?

O céu já foi azul, mas agora é cinza
O que era verde aqui já não existe mais
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada
De tanto brincar com fogo

Que venha o fogo então

Esse ar deixou minha vista cansada
Nada demais”

Alguém pode ter dúvida sobre com qual posicionamento sócio-político a banda se alinhava? Em Geração Coca-cola, é o ataque ao imperialismo yankee, ao consumismo, à ditadura militar:
 
“Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados dos Usa, de 9 às 6

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser?

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola”
 
É uma crítica e uma autocrítica, pois quem canta também é da mesma geração, filho da revolução (golpe), burguês sem religião… E essa transição entre uma posição sobre a sociedade e um questionamento sobre si próprio é uma constante nas músicas da banda. Viver a própria existência de forma livre, harmoniosa, amorosa não são incompatíveis com o questionamento sobre a Sociedade, a situação de injustiça, de fome, de opressão que outros sofrem; na verdade é uma necessidade aliar a realização pessoal com a mudança da sociedade. Como outro compositor já disse: “É impossível ser feliz sozinho…”
 
Na música “A Dança”, temos uma crítica que em outros momentos é uma autocrítica sobre um jovem que tem um a visão utilitarista das meninas, é consumista, imediatista, egoísta, limitado, pois só pensa na festa que vai rolar, se preocupa com as aparências como ideal de vida:
 
“Não sei o que é direito
Só vejo preconceito
E a sua roupa nova
É só uma roupa nova
Você não tem idéias
Pra acompanhar a moda
Tratando as meninas
Como se fossem lixo
Ou então espécie rara
Só a você pertence
Ou então espécie rara
Que você não respeita
Ou então espécie rara
Que é só um objeto
Pra usar e jogar fora
Depois de ter prazer.
Você é tão moderno
Se acha tão moderno
Mas é igual a seus pais
É só questão de idade
Passando dessa fase
Tanto fez e tanto faz.
Você com as suas drogas
E as suas teorias
E a sua rebeldia
E a sua solidão
Vive com seus excessos
Mas não tem mais dinheiro
Pra comprar outra fuga
Sair de casa então
Então é outra festa
É outra sexta-feira
Que se dane o futuro
Você tem a vida inteira
Você é tão esperto
Você está tão certo
Mas você nunca dançou
Com ódio de verdade.
Você é tão esperto
Você está tão certo
Que você nunca vai errar
Mas a vida deixa marcas
Tenha cuidado
Se um dia você dançar…”
 
É direto, rápido, é forte, é ácido, não tem receio em criticar, e ao mesmo tempo é radical, no sentido de radicalidade, de raiz do problema, e sempre é uma dicotomia, pois a música começa com “Não sei o que é direito”, na primeira pessoa, e depois alterna-se para falar para outro interlocutor. O “eu” não existe isoladamente, ele só se realiza com o “outro”, seja igual, diferente ou em um entrelugar dos dois.
Ao final, numa música que todos no show do Legião cantaram bem alto, o texto musical faz uma constatação, que vira um desafio:

Nós somos tão modernos
Só não somos sinceros
Nos escondemos mais e mais
É só questão de idade
Passando dessa fase
Tanto fez e tanto faz
Você é tão esperto
Você está tão certo
Que você nunca vai errar
Mas a vida deixa marcas
Tenha cuidado
Se um dia você dançar.
 
Eu pergunto: é só questão de idade? Passando dessa fase, tanto fez e tanto faz? Seremos iguais aos nossos pais, como cantava Elis Regina em “Como nossos pais”? Estamos aqui no show para dançar e esquecer, e depois nos adequar ao que as convenções sociais nos prescreveram? Ou almejamos mais, queremos ir além, queremos transcender?
 
Bem, vários outros grupos e artistas merecem citação e análise, aqui pinçamos pouca coisa de apenas uma banda que até hoje mobiliza as pessoas com suas músicas, apenas para ilustrar essa fase. Lógico que aí também temos um recorte de classe social, de espacialidade e de grupos que consomem essa parte da Indústria Cultural.
 
Salvador, 24 de setembro de 2017
 
Penildon Silva Filho